Alcides Villaça - poeta e professor
Da poesia para a música ou vice-versa. O fato é que este poeta, professor titular de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, colaborador de jornais e revistas, especialista em poesia moderna, em Drummond, Machado de Assis e Ferreira Gullar, além de autor de livros como O tempo e outros remorsos, Viagem de trem e O invisível , declara abertamente seu amor pela música, que segundo ele, talvez seja a melhor parte da vida.
O som do piano de meu pai foi meu primeiríssimo contato com a música. Ele tocava com energia um eclético repertório de valsas, foxes, tangos, sambas - e alguns noturnos, prelúdios, aberturas, fantasias. Tudo de ouvido, em versões pessoais e instáveis. Que lhe ocorriam e emprestavam, sobretudo às peças clássicas, a parceria invasiva de um intérprete entusiasmado. Foi nessas formas simplificadas que tomei contato com momentos de Mozart, Bach, Chopin, Tchaikowsky - principalmente com as passagens de popularidade. Mais crescido, municiava a vitrola com grossos discos de 78 rotações para ouvir, por exemplo, a Boston Pops Orchestra . Uma sinfonia de Beethoven devia pesar uns quatro quilos.
Já na adolescência, em Campinas, comecei a ouvir música clássica com algum apuro, indo um pouco além do devaneio de uma recepção puramente sentimental e reconhecendo traços de construção de uma linguagem. Nunca estudei música, não leio nada na pauta, mas o contato permanente e cada vez mais interessado com o repertório clássico trouxe-me alguma familiaridade com técnicas de composição e de interpretação. Para isso, concorreram em especial duas pessoas :Margot Proença , professora de filosofia, nume tutelar e amiga inestimável, e José Alexandre dos Santos Ribeiro , professor de português, ouvinte fino e divulgador de música clássica entre os jovens alunos. Reuníamos dois ou três colegas na casa de Margot (saudades) para conversar - e me aborrecia, a princípio, quando o bom papo dava lugar à audição de música. Meio contrariado, ia tomando contato com gravações consagradas de Ravel, Prokofiev, Satle, Scriabin , sobretudo as peças para piano, e abrindo os ouvidos para novos registros e dissonâncias. Já o professor José Alexandre promovia audições públicas, toda tarde de sábado, no Centro de Ciências, para um grupo de interessados em ouvir uma rápida e didática preleção sua, seguida de um "programa" variado, que ele organizava com a dedicação de um diretor de orquestra e fazia ouvir num potente equipamento de som.
No embalo de condições tão favoráveis, entrei para sempre no universo da música. Professor de literatura, com muito gosto, vez por outra deixo escapar em sala minha convicção de que a experiência do sublime, alcançada por alguns poetas e prosadores, ganha na música um patamar um tantinho mais alto - aquele no qual uma linguagem artística se emancipa de referências mais diretas ao mundo e se impõe ela própria como um mundo pleno. No adágio assai do Concerto em sol, de Ravel , ouço uma súmula das mais dolorosas elegias humanas, levada em tom reflexivo e pungente primeiro pelo piano e depois pelos sopros que vão chegando um por um e dialogando com ele, passando pelo forte envolvimento da orquestra e agonizando nos trêmulos do pianíssimo do teclado e das cordas. Em Beethoven, talvez o maior artista da humanidade, acompanho uma busca interminável e sempre insatisfeita. Busca de que? "Procurar o que?" pergunta o artista Drummond num poema magistral. Atrevo-me : procurar a forma pela qual tudo se expresse e que foge do homem só para provar que está viva. Beethoven me leva pela disciplina obsessiva que encontrar uma emoção igualmente obsessiva e com ela se casa, para que uma reforce o melhor da outra, sem deixarem de disputar o controle de uma espiral ascendente. E tem Johann Sebastian Bach que me levou a dedicar-lhe este poeminha, glosa de "Irene no céu", de Manuel Bandeira :
Imagino Johann Sebastian Bach entrando no céu:
- Com licença, São Pedro?
- Faz favor de entrar, João. Só não repare a bagunça.
Depoimento concedido a Marcos Fecchio
Revista Concerto - dezembro de 2011.